domingo, 26 de abril de 2015

EXPEDIÇÃO MAICURU: A AVENTURA JÁ COMEÇOU


Na corredeira do Panacum, as primeiras emoções. Pedro, o coordenador, acompanhou em mapa os traçados e perigos do Maicuru

A viagem foi da coordenação da "Expedição Maicuru - Canoagem e Trekking no Coração da Amazônia", com o objetivo de conhecer o trecho do rio onde vai acontecer o evento, em julho, identificar seus maiores desafios, anotar os prováveis locais para almoço, jantar e pernoite dos aventureiros. Mas acabou sendo muito mais do que isso!

O Maicuru surpreende não apenas quem não o conhece, mas também aqueles que garantem conhecê-lo palmo a palmo. E acabou não sendo apenas uma viagem, mas duas, ambas cheias de surpresas! E a principal delas (a que aqui darei destaque), com a presença do coordenador Pedro Paulo Sousa, só foi possível com a entrada em cena de dois desconhecidos que, de uma hora pra outra, viraram protagonistas em um roteiro onde sequer apareciam como figurantes.

Pedro, o guia Vavá Pinto e eu chegamos à ponte da rodovia PA-254 sobre o Maicuru, em Monte Alegre, às 8h15 da manhã do dia 18 de abril, sábado. Vavá, líder comunitário e ex-vereador, já subiu o Maicuru até próximo às suas nascentes, e por isso o convidamos. Na ponte, deveríamos nos encontrar com a outra parte da equipe que subiria o rio a partir da ponte da PA-255, que liga o município ao vizinho Santarém. Esta era formada pelo guia turístico Roberto de Deus, pelo pescador Duca e pelo piloto Rabib Abud. Desde a madrugada, uma chuva forte e demorada caia sobre a região, mas, com a proximidade do dia, ela cedeu e se tornou intermitente. Quando chegamos ao local do encontro, ela teimava em cair, ainda que mais fraca. Mas o encontro marcado não aconteceu.

A viagem de descida no rio estava programada para as 8h, em uma lancha empurrada por um motor de 45 cavalos, mas somente duas horas depois é que nos convencemos de que a segunda parte da equipe não se juntaria a nós. "Aconteceu alguma coisa com eles, na subida. Acho que ficaram engatados na Muíra", afirmou o Vavá Pinto, referindo-se às muitas dificuldades que a equipe teria encontrado para vencer a maior das cachoeiras existentes no trecho do rio escolhido para a Expedição Maicuru (na verdade, nesse trecho do rio não há cachoeiras, no sentido de quedas-dágua, mas apenas corredeiras; já no médio e alto Maicuru, elas são altas e belas). "Vamos logo ver um outro jeito pra descer o rio", sugeriu. E logo pensamos em usar uma das canoas de madeira existentes no porto junto à ponte, empurradas por rabetas. Após rápida negociação, a jovem Renata, filha de Rosângela Santos, dona de um pequeno comércio próximo à ponte, cedeu-nos sua canoa já equipada com a pequena máquina. “É de sete”, afirmou, referindo-se à potência do motor.

A viagem ganhara um novo ingrediente de emoção. A Expedição, marcada para acontecer no período de 23 a 26 de julho, começava naquele momento. E ganhava dois novos protagonistas: Nailson Santana e Cleudo Barros, ambos de 36 anos, pescadores locais, que aceitaram a missão de nos levar até a comunidade de Cuiabal, a primeira abaixo da corredeira Muíra. Sem saber se encontraríamos a equipe que subiria o rio, combinamos com Manuel Souza, motorista cedido pela Prefeitura de Monte Alegre para nos dar apoio, para nos apanhar na comunidade de Cuiabal. Nailson, que assumiu o papel de piloto da rabeta, calculou que a viagem levaria cerca de uma hora e meia. Mas ela demoraria muito mais.

Vencida a dificuldade inicial de se equilibrar dentro da estreita canoa – Pedro Paulo e eu nascemos quase dentro do rio Tapajós, em Santarém, ele é praticante de canoagem, mas confesso que pendemos de um lado para outro, por pouco não fazendo a canoa alagar -, a viagem correu tranquila, até surgirem os primeiros rebojos.
Enquanto aguardávamos a outra parte da equipe de viagem, Pedro e Vavá avaliam os primeiros perigos do rio. Em primeiro plano, a canoa que usaríamos na viagem. No alto, à esquerda, o linhão de transmissão que ainda não fornece energia aos moradores da região

Mesmo já no fim do inverno, as chuvas que ainda caem sobre a região são intensas e demoradas, ajudando a elevar o nível dos rios da Amazônia. Com o Maicuru isso não é diferente, apesar de ele estar com o nível abaixo do que esperavam os moradores locais. Apesar disso, a maioria dos inúmeros pedrais existentes em seu leito está encoberta pelas águas. É o que indicam os rebojos que a todo momento se formam na superfície do rio. São eles que indicam a direção que Nailson deve dar à canoa, evitando o choque com as pedras. Um encontro com uma delas representaria um risco sério a todos. Mas ele conhece o rio como poucos, demonstra coragem, e isso nos tranquiliza. Mais à frente, no entanto, ele trocou o destemor pela prudência.

A proximidade da corredeira do Panacum, cerca de uma hora depois, foi anunciada pelo soar característico de água cortada pelas pedras. Pedro, sentado no banco de proa da embarcação, deu um grito de emoção ao ver as primeiras pedras e as águas revoltas. Uma leve bruma subia do turbilhão, de uma margem a outra do rio, com cerca de 200 metros naquele ponto. Nailson reduziu a força do pequeno motor, ficou de pé na canoa, que pendeu de um lado ao outro, rapidamente. A visão da corredeira exigiu dele uma avaliação rápida, quase instantânea, e, repentinamente, ele girou a canoa para a margem esquerda, buscando um ponto onde pudesse encostar. “É melhor vocês descerem, vão pelo mato, e a gente apanha vocês depois da cachoeira”, sugeriu, quase ordenando. Concordando, Pedro logo indicou um local junto a um grupo de urucuris (Attalea phalerata), espécie de palmeira muito comum na região, onde saltamos. As primeiras feridas logo seriam abertas.
Em julho, as águas do rio estarão menores, os pedrais mais exposto: maior perigo e mais emoções aos aventureiros que vão desce-lo em caiaques

Um caminho de gado facilitou o início da caminhada. O local não era de mata fechada, mas um pasto mal cuidado, tomado por um mato rasteiro, quase uma capoeira, e farto de espinheiros, cipós e uma espécie de capim cortante, parecido com o tiririca. Pedro, acostumado com suas viagens de aventura, estava de tênis, calça e camisa compridas. Vavá, idem. Ambos, protegidos. Eu, apenas de sandálias de dedo, camiseta e bermuda. Logo me arrependeria por não ter usado uma calça comprida que levei para essa finalidade, mas que deixei na cidade.

Ao descer um baixão com o mato mais elevado – Pedro e Vavá estavam mais à frente, eu havia ficado para fazer umas fotos da corredeira –, senti os primeiros agarramentos pelo boné, camisa e bermuda. E também dores ardidas, como de agulhas em brasa. Voltando ao pasto, vi o sangue que brotava de três pequenos ferimentos no braço direito, riscos avermelhados nas pernas, também com pequenas gotas de sangue. Parei, olhei pra traz para recolher meu boné que havia sido arrancado da cabeça. Foi, então, que percebi que havia passado por entre espinheiros e capins cortantes. Sem motivo aparente, lembrei-me de meu filho Felipe, que um dia, brincando, me disse: “Macho que é macho não bebe o mel: ele mastiga a abelha”. Eu não estava ajudando a planejar uma expedição: eu já a vivia, plenamente. Respirei fundo, limpei o suor que escorria pelo rosto e segui em frente. Mas eu não imaginava o que ainda iria nos acontecer.

Habilidosos, e com a canoa livre de nossos pesos, Nailson e Cleudo atravessaram a corredeira do Panacum com alguma dificuldade, mas sem risco. Pedro, Vavá e eu os observamos do alto da margem. Mais abaixo, em um local menos perigoso, voltamos a embarcar.

Ao longo do rio, pequenas aberturas na densa mata ciliar denunciam a presença humana. Ao olhar com mais atenção, viam-se casas modestas de madeira, a maioria coberta com palha. Pequenos animais domésticos corriam pelos quintais: uns ciscavam, outros fuçavam, ou pastavam. Em algumas delas, mulheres cuidavam de afazeres domésticos, crianças esbaldavam-se no banho de rio e outras brincadeiras. Homens, em dupla, e usando canoas de tamanho mínimo, pescavam. Parece que haviam combinado ser proibido o uso de outro apetrecho de pesca que não fossem a tarrafa, o caniço e pequenas armadilhas, como os espinhéis. Malhadeiras, nenhuma!

Abaixo da corredeira do Panacum, as casas se tornam mais frequentes ao longo do rio, algumas como sede de pequenas fazendas de criação de gado. Estreitas estradas findam e recomeçam nas margens do rio, onde os mais ousados atravessam suas motos em pequenas bajaras. Larguras de dois ou três dedos no casco evitam que alaguem. O equilíbrio e tranquilidade deles impressionaram os citadinos.
Ao longo do rio, pescadores tiram dele parte do sustento de suas famílias. Espécies como o surubim, a curimatã, o tucunaré, a pirapitinga e o tambaqui ainda são abundantes

Não apenas a densa floresta ciliar fala de uma região ainda farta de natureza, apesar da crescente invasão humana. Os locais falam com entusiasmo da abundância e diversidade de peixes. Espécies como o surubim (Pseudoplatystoma corruscans), a curimatá (Prochilodus lineatus), o tucunaré (Cichla ocellaris), a pirapitinga (Piaractus brachypomus) e o tambaqui (Colossoma macropomum) ainda são pescadas em grande quantidade, especialmente os de piracema. Aves como maguaris (Ciconia maguari), garças (Ardea alba), socós-boi (Tigrisoma lineatum) e arirambas (Galbula ruficauda) são vistas ao longo do rio, geralmente sozinhas ou em pares, onde encontram alimento farto. Os biguás (Phalacrocorax brasilianus) são mais numerosos, geralmente em pequenos bandos. Ariscos, logo se afastam com a nossa presença. Em alguns locais, a algazarra das cigarras (Carineta fasciculata é a espécie mais comum no Brasil) macho tentando impressionar as fêmeas para o acasalamento – nosso folclore diz que elas chamam o verão - é ensurdecedora, um canto que ecoa na margem oposta do rio e é levado pelo vento.
Garças, maguaris, arirambas e biguás são vistos ao longo do ri, que as alimenta com abundância e variedade de peixes

Por volta das 13h30, depois de muitas curvas do rio, chegamos à temida Muíra – temida não apenas por ser a maior corredeira naquele trecho do rio, mas porque ela se abre em três corredores, todos igualmente tomados por lajeiros e pedras que se elevam acima do nível da água, mesmo nesta época de rio cheio. É difícil saber qual deles é o menos perigoso. Em janeiro passado, quando Pedro e eu lá estivemos para um primeiro contato com aquela corredeira, pareceu-nos que o canal da esquerda era o menos agressivo. Nailson e Cleudo demonstraram não conhecer bem aquele ponto do rio. Vavá Pinto sugeriu o braço da direita, mas sem muita convicção. Pedro e eu decidimos, então, pelo corredor esquerdo, e Nailson para lá dirigiu nossa canoa. Mas, que nada!

Logo após a primeira curva à direita, e sem muito espaço e tempo para uma manobra repentina, logo as pedras surgiram à nossa frente, ameaçadoras, distante pouco mais de vinte metros. A surpresa nos causou susto, apreensão... Com habilidade surpreendente no manejo da rabeta, Nailson fez um movimento brusco, levantando o eixo de metal com a palheta da pequena máquina, afundando-o em seguida um pouco mais à esquerda, acelerando-o ao máximo. O pequeno casco girou rapidamente à direita e, desequilibrado, foi empurrado à margem principal. Ainda tomados pelo susto, alcançamos a margem, onde Pedro, não sem dificuldade, saltou e segurou a canoa, prendendo-a com a corda a um galho de árvore.

Todos descemos. Era preciso avaliar os riscos, evitar acidentes. Entramos na mata, margeando o rio, e vimos de perto a força das águas sendo cortadas pelas pedras. Diante do perigo evidente, mas evitável, a prudência prevaleceu. E decidimos: Pedro e eu seguiríamos por terra, acompanhando a margem do rio, tentando chegar ao final do ramal da Muíra, onde estivemos em janeiro passado, que se inicia na estrada que leva à comunidade de Santos, na margem esquerda do rio Maicuru. Vavá, Nailson e Cleudo tentariam levar a canoa por um dos braços da corredeira. Se tudo desse certo, nos encontraríamos cerca de 400 metros rio abaixo. “Vai dar tudo certo”, garantiu Vavá. “Mas, cuidado: não se afastem da margem do rio”, alertou. Mas haveria um risco que não tínhamos avaliado.

De início, por um terreno que misturava pasto e capoeira, seguimos um caminho de gado já parcialmente coberto pela relva, que logo depois sumiu. Fomos em frente, ouvindo o som da corredeira à nossa direita. A subida do nível do rio fez os pontos mais baixos do terreno ser invadidos pela água. A chuva deixou a relva e os arbustos molhados, o solo estava encharcado, a água se acumulava em vários pontos, formando poças. Marcas de patas e fezes indicavam que havia gado na área. Para evitá-los, era importante olhar para os lados e para a frente, mas sem dispensar atenção com o chão. Pisar em uma cobra ou um inseto peçonhento só tornaria as coisas ainda piores para nós naquele momento – e estávamos longe demais do mais próximo ponto de provável socorro. Mais adiante, o pasto havia se tornado em capoeira. O caminho de gado havia sumiu. A adrenalina estava alta em nossos corpos. Chegamos a um pequeno urucurizal, atravessamos um córrego, seguimos em frente. 
E, depois de uma das tantas curva do rio, eis que surge a Muíra, ameaçadora, perigosa. Vista apenas de longe, não possível descê-la. Isso ficou para Nailson, Cleudo e Vavá

Depois de meia hora, paramos, senti o Pedro um tanto temeroso. Assumi a dianteira, guiado apenas pela zoada da corredeira à nossa ilharga direita. Descemos um baixio, subindo-o em seguida e, surpresa, vislumbramos uma cerca de arame liso a uns vinte metros. Lembramos da cerca ao lado do ramal da Muíra que víramos em janeiro, mas a decepção não demorou. Depois dela, apenas um amplo pasto. Ultrapassando-a, resolvemos descer à direita, rumo ao rio, depois de ouvir algo que nos pareceram vozes e o som do rabeta. O Pedro gritou. Nada! Gritei também. Nada! “Ou são eles, ou é um curupira tentando nos enganar”, brinquei, esforçando-me em manter nosso moral elevado. Chegamos à margem em um ponto do rio onde não havia pedras. Ao tentar descer o barranco da margem, escorreguei, caí, mas logo levantei e limpei a lama da bermuda. Pedro passou a usar o apito de seu colete de navegação, sem resposta. Voltei a gritar, insistentemente e o mais alto possível. Nada! “Pedro, será que teremos um capítulo intitulado ‘Perdidos’, no livro que vamos escrever sobre a Expedição?”, insisti no bom humor, mas já claramente preocupado. Estávamos, sim, perdidos! 

Deixamos a margem, voltando ao pasto por onde havíamos passado antes e retomamos a caminhada no rumo que acreditávamos ser o correto, margeando o rio. O sol indicava que estávamos quase no meio da tarde, e a fome já nos incomodava. Como os judeus do Êxodo, fomos salvos pela natureza: demos de cara com uma frondosa mangueira, carregada de frutos amarelinhos. Sob ela, centenas deles. Comemos duas, cada um. Sem saber como terminaria o dia, coloquei mais quatro nos bolsos da bermuda. E seguimos. 

Mais adiante, mais gritos de chamada aos nossos parceiros de aventura. Nada! Sem falar um pro outro, era certo que nos perguntávamos: “Será que eles conseguiram descer a corredeira, venceram as pedras?”, “Deu certo, ou a canoa virou e eles desceram de bobuia?”, “Se não os encontrarmos, o que faremos?”. De repente, vozes, gritos. Seriam eles, ou seria o curupira brincalhão? Gritamos de volta, eles responderam. Apressamos o passo, animados. Eu tinha motivos pra não disfarçar o sorriso de alívio e satisfação. Era o Vavá. Estávamos salvos! Ele nos guiou por uma capoeira alta e logo chegamos à casa velha e abandonada que havíamos visto, em janeiro. Mais um pouco e – ufa, alívio! – vimos a cerca e o ramal que buscávamos, onde encontramos Nailson e Cleudo, além de um casal morador local e uma criança. Puxa, que alegria em vê-los. A viagem não estava terminada, mas essa era a sensação! Meu relógio marcava pouco mais de 14h. Precisávamos seguir em frente. Despedimo-nos do casal e partimos, descendo o rio.

Chegamos à comunidade de Cuiabal às 15h30, onde Manuel Souza, o motorista da prefeitura, já nos aguardava. Foi o segundo alívio, pura satisfação. Depois de lanchar e abastecer a rabeta, agradecemos enormemente a Nailson e Cleudo pela colaboração deles, convencidos de que aquela viagem não chegaria ao fim sem a participação deles. 

Deixamos o Maicuru rumo à cidade de Monte Alegre. Os dois rapazes voltaram ao rio, rumo à comunidade Três Marias, junto à ponte da PA-254, onde moram. Vão lembrar daquele dia para sempre, com certeza, pela aventura em si, mas também pelos novos conhecimentos que somaram sobre o rio que julgavam conhecer como a palma de suas mãos.

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PS: No Cuiabal, tivemos notícias da equipe que deveria nos apanhar na ponte da PA-254: eles tentaram vencer as águas e pedrais da Muíra, sem sucesso. O casco de alumínio da lancha sofreu avarias nas pedras e, sem opção, voltaram à cidade. Em Monte Alegre, por telefone, o guia Roberto de Deus confirmou a história.

Em julho, as águas do Maicuru estarão mais baixas, expondo os pedrais e lajeiros de seu leito e tornando a descida ainda mais perigosa. Também mais emocionante? “Certamente que sim”, garante Pedro Paulo, o coordenador da Expedição Maicuru.

A viagem de sábado surpreendeu pessoas experientes, que julgavam conhecer muito bem o rio e seus perigos. Como será com os aventureiros que vão descê-lo em caiaques, em julho próximo?

Isso será narrado em um próximo capítulo.

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