quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

UMA PROCISSÃO “DUCA”

Otávio Pessoa*

Palavras inocentes adquirem conotação pejorativa pelo uso corriqueiro, em nossa língua, como a ingênua "caralho", aquela plataforma mais alta do mastro das caravelas, de onde os marujos observavam o horizonte, ponto mais instável da embarcação, que balança a qualquer vento, um local solitário e mais exposto ao sol, lugar de castigo dos marujos mal comportados. Fico imaginando o ríspido capitão, com um indicador apontado para o pobre marinheiro e o outro para o alto, ordenando-lhe que vá para a gávea, não o aprazível bairro do Rio de Janeiro. Gávea é outro nome que se dá àquela parte da caravela. “Vais passaire o resto do dia na casa do...”.

Chega. Isso foi apenas um “nariz de cera”, prá contar um causo que se deu no norte do país, em Nova Olinda do Norte, no rio Madeira, estado do Amazonas.
Lá existe uma comunidade chamada São Sebastião. A líder é uma figura exótica, dona Maria, mais conhecida como “Mãe Maria”. Como boa brasileira, adepta do sincretismo religioso. Não perde uma missa das seis, mas, de vez em quando, faz uns descarregos, uns despachos, tira quebranto de crianças, conserta dismintiduras, espinhela caída, carne trilhada, bico de papagaio, além de rezar respôncio. Quando alguém perde um objeto, corre lá com Mãe Maria: ela reza o respôncio prá São Francisco e, pouco depois, lá está o objeto de volta. Só não reza prá coisa de brincadeira ou de safadeza. Certa feita, ela botou prá correr um moleque que lhe foi pedir prá ajudá-lo a encontrar uma bola de seringa que havia perdido e estava quase na hora do futebol da curuminzada. Assim como escorraçou um político que lhe propôs uma “dobradinha”, querendo explorar o prestígio da velha.

Prestígio que foi crescendo e tornou seu barracão uma festa só. Até procissão seguida de ladainha passou a ter. E, depois, arraial e muita “esfregação de virilha”, ao som de bandas das redondezas e muita música eletrônica.

Quem não via com bons olhos aquele movimento todo era o padre. Preposto do Altíssimo e do padroeiro, ele sentia na pele e, principalmente, no bolso a concorrência da Mãe Maria. Entretanto, deixou a coisa rolar, até o dia em que teve de excomungar a velha e desautorizar a festa.

Era um dia especial. Mãe Maria fazia o festejo profano de São Sebastião. Muita gente de todas as paragens, foguetório desde a madrugada. O HG, sigla pela qual era conhecido o velho Hélcio Guerra, “papudinho” profissional que noutros tempos, contavam os historiadores, já fora “otoridade”... Pois bem, o HG já “enchia a cara” desde cedo.

Sai a procissão. Todos acompanham o andor do santo também louvado nos terreiros de macumba, entoando cantos e gritando palavras de ordem. Menos o HG, que a essa altura já estava conversando com ele mesmo, na puxada do barracão.

Lá pelas tantas, a procissão, que já havia feito o contorno do igarapé do Curubuçu, aponta na direção do barracão de Mãe Maria, que puxava a reza e caminhava, mancando a sua perna esquerda que fora picada por uma cobra surucucu, ainda criancinha. Um verdadeiro milagre que sinalizou seu destino, diziam os mais crédulos, que se ajoelhavam ante a passagem dela.

No barracão, só o HG, que estava porre, mas não era burro. Pelo chiado do alto falante, ele percebeu que o som do “boca de ferro” estava ligado. Então, resolveu tirar uma de speeker e narrar, para as poucas pessoas que não acompanhavam a procissão, a começar pelo pároco, a chegada vitoriosa da romaria. “Apertou mais uma”, pegou o microfone e castigou:

- Lá vem a procissão do glorioso São Sebastião! E quem vem na frente é a verdadeira salvadora deste povo abandonado. A grandiosa, a maravilhosa, a poderosa mãe de todos nós. Tão purrudamente poderosa que é quase Deus! É ela! É ela! É a Mãe Mariiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiia!

Ouvindo isso, Mãe Maria apressou o passo cambaleante, no que foi acompanhada por todos. HG, percebendo o súbito avanço, até pela poeira que ficou mais intensa, se empolgou, pensou que tinham gostado e mandou ver:
- Égua, parente! Agora a vitoriosa procissão da nossa gloriosa Mãe Maria vem cunscaralho!

Foi o suficiente pro padre, que só precisava de uma deixa dessas, decretar o fim dos festejos de Mãe Maria, que não deixou de assistir a missa das seis. Só que, de vez em quando, a velha faz “baixar o santo” e benze todo mundo que avisita. Quanto ao velho HG, se ainda não morreu de cirrose, continua tomando todas.

* Octávio Pessoa - Jornalista, advogado e auditor federal de controle externo.

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